Vamos falar de privilégios?

Pensar sobre privilégio é fundamental para entender algumas questões estruturais da nossa sociedade que causam as desigualdades, é um exercício também para pensar o lugar que ocupamos (nossos próprios privilégios) e como precisamos ter empatia com grupos desprivilegiados. Afinal, para combatermos qualquer opressão, a análise tem que ser feita tanto pelo lado oprimido, quanto pelo lado opressor, não dá pra luta ser só de uma parte.

Para falar e entender de privilégio é preciso estudar, ler sobre o assunto, pesquisar, não dá pra basear sua opinião em uma mensagem que recebeu no grupo de whatsapp ou em um vídeo de YouTube, principalmente porque rola muita desinformação sobre o tema por aí e muita gente formando opinião equivocada sem ter lido uma linha de um trabalho sério. 

A primeira coisa é que não podemos olhar pro privilégio a partir de um contexto individual, porque ele faz parte de um contexto mais macro, o social, ou seja, está ligado a um grupo e não apenas a uma pessoa. A estrutura dos privilégios envolvem diversos fatores, nuances, construções, decisões, preconceitos, violências, vieses inconscientes e estereótipos que, na nossa sociedade vai facilitar ou dificultar a vida de pessoas pertencentes a um grupo de características iguais ou semelhantes. Murilo Leal define de duas formas: “privilégio tem a ver com tudo aquilo que você não precisa se preocupar por causa da posição social que você ocupa na sociedade em que a gente vive. Segundo, privilégio tem a ver com tudo que pro seu grupo social é regra, e para outro grupo social é exceção.”

O privilégio NÃO está ligado ao esforço individual, ele não tem a ver com a batalha que você lutou para chegar onde você está hoje, o privilégio está em um lugar muito mais invisível e subjetivo do que pensamos, por que ele acontece de forma naturalizada na maioria das vezes, dificultando até mesmo que observemos que existe privilégio em situações da nossa vida, inclusive é muito mais fácil perceber quando não tem, do que quando tem.

Imagine duas pessoas que se aplicam para um processo de emprego, elas têm a mesma formação e qualificação, ambas são aderentes ao perfil da vaga, mas uma é um homem negro e a outra é um homem branco. 

O privilégio vai incidir no momento que o homem branco for escolhido para a vaga apenas pelo fato de ser um homem branco, já que a maior parte dos processos seletivos ainda não trabalham pela ótica da inclusão, fazendo com que a maioria das empresas tenha uma super representação de homens brancos chegando, às vezes, a uma porcentagem 3 ou 4 vezes maior do que a que representam na população brasileira. 

Cida Bento, uma das maiores acadêmicas sobre as relações raciais no Brasil, dá nome a esse processo: “As cotas de 100% dos lugares de poder em nossa sociedade, não são explicitadas. Foram construídas silenciosamente, ao longo de séculos de opressão contra negros e indígenas, e foram naturalizadas.”

Provavelmente esse homem branco nunca perceberá que teve privilégio de raça durante sua vida. Aqui neste contexto os dois homens podem ter tido o mesmo esforço, mas eles nunca terão o mesmo acesso e oportunidades.

E não precisamos ir muito longe para perceber isso, uma vez ouvi da Margareth Goldenberg, criadora do Movimento Mulher 360, um exemplo simples e claro de privilégio: a possibilidade de dar descarga. Ninguém para pra pensar que ter essa facilidade no dia a dia é um privilégio, mas a verdade é que 30% da população brasileira não têm acesso ao saneamento básico. Aqui vemos o privilégio pela ótica de classe, onde pessoas que têm mais dinheiro e pertencem a classes sociais mais altas vão ter menos preocupação e mais facilidades do que aquelas de classes mais baixas.

Outro ponto é que os privilégios acompanham os marcadores identitários e suas interseccionalidades, temos privilégio de raça, de gênero, de classe, de orientação afetivo-sexual, de identidade de gênero, de corpo e vários outros. Para uma mulher negra, os privilégios, ou a falta deles, irão incidir pela ótica de raça e de gênero, consequentemente é esse grupo que vemos com menor representação no mercado de trabalho, são as que ganham os menores salários e que tem a maior parcela desempregada. Um homem branco cadeirante terá privilégio de raça e gênero mas não terá o privilégio de acessibilidade.

Pessoas cisgênero não precisarão se preocupar com questões como nome social, acesso ao banheiro, respeito pela sua identidade nos ambientes da sociedade, acesso a uma saúde que respeite seus corpos e se vão conseguir começar uma hormonização ou fazer alguma cirurgia. Pessoas cis nunca precisarão se preocupar em serem expulsas de casa, da escola ou do trabalho por causa da sua identidade de gênero, nem se serão mortas por causa de transfobia.

Pessoas hetrossexuais nunca precisarão pensar na aceitação de familiares e amigos, se vão poder se relacionar com uma pessoa ou não ou se poderão demonstrar o afeto publicamente, se vão poder falar de suas/seus companheiras(os) para o time de trabalho ou se vão receber os mesmo auxílios e benefícios para cônjuges.

Pessoas sem deficiências não precisarão pensar antecipadamente sobre o acesso ao local que irão ou deixarão de ir em algum lugar por que não conseguem chegar até lá sem constrangimentos, não vão deixar de ter acesso a um conteúdo por que não tem tradução ou descrição em áudio, ou deixarão de ler um livro porque não tem a versão em braile. 

Homens cisgênero nunca precisarão ter medo de serem estuprados se saírem sozinhos a noite, ou vão ter o estresse e a humilhação por serem assediados sexualmente pelo chefe, ou não conseguirem acessar lugares porque aquilo não é “coisa de mulher”. Homens cisgênero nunca sentirão a pressão da maternidade imposta pela sociedade ou terão sua mentalidade ou inteligência questionadas ou postas a prova. 

A verdade é que nós não temos um caminho de acesso e direitos justo e igual para todes, para uns, apenas o esforço individual bastará para galgar postos mais altos, para outros, nem todo o esforço do mundo será suficiente para ocupar um lugar no mercado de trabalho, e não vamos esquecer que não podemos generalizar as exceções, isso deixa tudo mais injusto ainda. 

O ideal seria se todos fossem examinados apenas pelas capacidades, competências e habilidades, mas enquanto o jogo não for igual para todas e todos as(os) participantes, será necessário pensar em ações afirmativas e políticas de inclusão, e nesse meio tempo, cada um vai entendendo o que pode fazer ou deixar de fazer para contribuir na evolução da nossa sociedade no sentido da equidade.

Quem sabe quando chegarmos lá poderemos pensar na meritocracia, enquanto isso, ela ainda é apenas um mito. 

Leia o texto da Júlia Rosemberg falando sobre “O mito da meritocracia”.

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